... farelos por aí ...
... farelos por aí ...
Queria ter
vivido melhor,
porém a mediocridade sempre me foi farta
e generosa nos caminhos que escolhi para viver.
Queria ter sido mais alegre,
porém a tristeza sempre foi companheira fiel
nos dias intermináveis de abandono.
Queria ter amado mais as pessoas que conheci
ou que fingi conhecer,
porém, na maioria das vezes,
eu também não me conhecia.
Queria ter andado mais livre,
porém, algemado à ignorância, perdi muito
tempo tentando voar sem sequer saber andar.
Queria ter lido mais livros,
porém, analfabeto de ousadia, passei
muitos anos enxergando pelos olhos
adormecidos de outras pessoas.
Também queria ter escritos mais poemas
do que bilhetes pedindo desculpas,
porém as palavras sempre me vieram
como culpa e quase nunca como estrelas.
Queria ter roubado mais beijos e abraços
protegidas pela
magia da infância,
porém cresci muito cedo e a timidez sempre
me foi uma lei muito severa a ser cumprida.
Queria ter pensado menos no futuro,
porém o passado simples
nunca foi o melhor presente
e a eternidade sempre me pareceu coisa de gente
que tem preguiça de viver.
Queria ter sido um homem mais humilde,
porém a vaidade e a ganância sempre
me cercaram de mimos e coisas que até hoje
Queria ter
pregado mais a paz,
porém, como um covarde, gastei muita munição
tentando atingir amigos e desconhecidos
que não usavam coletes à prova de balas
nem blindados no coração.
Queria ter sido mais forte,
porém rir dos vencidos e bajular os mais ricos
sempre me pareceu o caminho mais curto
para o esconderijo secreto das minhas fraquezas.
Queria ter dito mais a verdade,
porém a mentira sempre foi moeda de troca
para comprar o respeito e a admiração
das pessoas fúteis de almas vazias.
Queria que o mundo fosse mais justo,
porém, avarento de nascença, fui o primeiro
a esconder o sol na palma da mão,
antes que o vizinho o fizesse,
e mesquinho por vocação
escondi as noites com lua
para que os poetas não a cortejassem.
Queria ter dito mais besteiras,
porém fui desses idiotas amantes
das proparoxítonas e sujeito oculto
nos bate-papos de botecos de esquinas,
onde a vida não acontece por decreto.
Queria ter colhido mais flores,
porém o medo de espinhos
afugentou a primavera e,
outono que sempre fui,
plantei inverno quando a terra pedia verão.
Hoje, queria ter acordado mais cedo,
porém temo que, pra mim,
seja tarde demais.
Título: Porém
Fonte: O poema está no livro “Colecionador de pedras”, de
Sérgio Vaz.
A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a
cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com as
panelas. Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a
algo que poderia ter o nome de ‘culinária literária’.
Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha:
cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate, feijão e arroz,
bacalhoada, suflês, sopas, churrascos. Cheguei mesmo a dedicar metade de um
livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A festa de Babette,
que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas
limitações e competências, nunca escrevi como ‘chef’. Escrevi como filósofo,
poeta, psicanalista e teólogo – porque a culinária estimula todas essas funções
do pensamento.
As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha
capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a
pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A
pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples
molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas.
Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E
algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas ideais começaram a estourar
como pipoca.
Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de
pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma
inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um
extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu
pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma
panela.
Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido
religioso? Pois tem. Para os cristãos, religiosos, são o pão e o vinho, que
simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque
vida, só vida, sem alegria, não é vida…). Pão e vinho devem ser bebidos juntos.
Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que aprendi
com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida
sagrada do Candomblé…
A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido. Fosse eu agricultor
ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas
nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob
o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os
milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que
teve a ideia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo,
esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo
fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém
jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a estourar,
saltavam da panela com uma enorme barulheira.
Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros
quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças
podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples
operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de
todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!
E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a
transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação
porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O
milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois
do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para
comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra
coisa – voltar a ser crianças!
Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de
pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.
Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos
pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São
pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que
o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo
é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser
fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego,
ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão –
sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o
fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande
transformação.
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro
ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro
de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino
diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca
não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do
fogo, a grande transformação acontece: pum! – e ela aparece como uma outra
coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta
rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está
representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do
milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. ‘Morre
e transforma-te!’ – dizia Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás
com os paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive,
acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser
forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua.
Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.
Meu amigo William, extraordinário professor-pesquisador da
UNICAMP, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do
estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os
piruás. Mas, no mundo da poesia as explicações científicas não valem. Por
exemplo: em Minas ‘piruá’ é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram
casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: ‘Fiquei piruá!’ Mas acho
que o poder metafórico dos piruás é muito maior.
Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se
recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que
o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: ‘Quem preservar a sua vida
perde-la-á.’ A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não
estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se
transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o
estouro alegre da pipoca, no fundo da panela ficam os piruás que não servem
para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser
crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira” …
Título: A pipoca
Fonte: Esta crônica
está presente no livro O amor acende a lua.
— Hoje vamos ao baile!
Justino assim se anunciou,
estendendo em suas mãos um embrulho cor de presente. Glória, sua esposa, nem
soube receber. Foi ele quem desatou os nós e fez despontar do papel colorido um
vestido não menos colorido. A mulher, subvivente, somava tanta espera que já
esquecera o que esperava. Justino guardava ferrovias, seu tempo se amalgava,
fumo dos fumos, ponteiro encravado em seu coração. Entre marido e mulher o
tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos
cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem?
De onde o espanto de Glória,
deixando esparramejar o vestido sobre seu colo. Que esperava ela, por que não
se arranjava? O marido, parecia ter ensaiado brincadeira. Que lhe acontecera? O
homem sempre dela se ciumara, quase ela nem podia assomar à janela, quanto
mais. Glória se levantou, ela e o vestido se arrastaram mutuamente para o
quarto. Incrédula e sonambulenta, arrastou o pente pelo cabelo. Em vão. O
desleixo se antecipara fazendo definitivas tranças. Lembrou as palavras de sua
mãe: mulher preta livre é a que sabe o que fazer com o seu próprio cabelo. Mas eu, mãe: primeiro, sou mulata. Segundo, nunca
soube o que é isso de liberdade. E
riu-se: livre? Era palavra que parecia de outra língua. Só de a soletrar sentia
vergonha, o mesmo embaraço que experimentava em vestir a roupa que o marido lhe
trouxera. Abriu gaveta, venceu a emperrada madeira. E segurou o
frasco de perfume, antigo, ainda embalado. Estava leve, o líquido havia já
evaporado. Justino lhe havia dado o frasco, em inauguração de namoro, ainda ela
meninava. Em toda a vida, aquele fora o único presente. Só agora se somava o
vestido. Espremeu o vidro do cheiro, a ordenhar as últimas gotas. Perfumei o quê com isto, se perguntou lançando o frasco no vazio da janela.
— Nem sei o gosto de um cheiro.
Escutou o velho vidro se
estilhaçar no passeio. Voltou à sala, o vestido se desencontrando com o corpo.
As bainhas do pano namoriscavam os sapatos. Temia o comentário do marido sempre
lhe apontando ousadias. Desta vez, porém, ele lhe olhou de modo estranho, sem
parecer crer. Puxou-a para si e lhe ajeitou as formas, arrebitando o pano,
avespando-lhe a cintura. Depois, perguntou:
— Então não passa um arranjo no rosto?
— Um arranjo?
— Sim, uma cor, uma tinta.
Ela se assombrou. Virou costas e
entrou na casa de banho, embasbocada. Que doença súbita dera nele? Onde diabo
parava esse bâton, havia anos que poeirava naquela prateleira? Encontrou-o,
minúsculo, gasto nas brincadeiras dos miúdos. Passou o lápis sobre os lábios.
Leve, uma penumbra de cor. Carregue
mais, faça valer os vermelhos.
Era o marido, no espelho. Ela ergueu o rosto, desconhecida.
— Vamos ao baile, sim. Você não costumava dançar,
antes?
— E os meninos?
— Já organizei com o vizinho, não se preocupa.
E foram. Justino ainda teve que tchovar a carrinha. Ela,
como sempre, desceu para ajudar. Mas o marido recusou: desta vez, não. Ele
sozinho empurrava, onde é que se vira?
Então, se aproximou um homem, em
boa postura, pedindo ao guarda-freio lhe desse licença de sua esposa para um
passo respeitoso. Os olhos aterrados dela esperaram cair a tempestade. Mas não.
Justino contemplou o moço e lhe fez amplo sinal de anuência. A esposa arguiu:
— Mas eu preferia dançar primeiro com meu marido.
— Você sabe que eu nunca danço...
E como ela ainda hesitasse ele
lhe ordenou quase em sigilio de ternura: Vá, Glorinha, se divirta!
E ela lá foi, vagarosa,
espantalhada. Enquanto rodava ela fixava o seu homem, sentado na mesa. Olhou
fundo os seus olhos e viu neles um abandono sem nome, como esse vapor que
restara de seu perfume. Então, entendeu: o marido estava a oferecê-la ao mundo.
O baile, aquele convite, eram uma despedida. Seu peito confirmou a suspeita
quando viu o marido se levantar e aprontar saída. Ela interrompeu a dança e
correu para Justino:
— Onde vai, marido?
— Um amigo me chamou, lá fora. Já volto.
— Vou consigo, Justino.
— Aquilo lá fora não é lugar das mulheres. Fique,
dance com o moço. Eu já venho.
Glória não voltou à dança.
Sentada na reservada mesa, levantou o copo do marido e nele deixou a marca de
seu bâton. E ficou a ver Justino se afastando entre a fumarada do salão, tudo
se comportando longe. Vezes sem conta ela vira esse afastamento, o marido
anonimado entre as neblinas dos comboios. Desta vez, porém, seu peito se
agitou, em balanço de soluço. No limiar da porta, Justino ainda virou o rosto e
demorou nela um último olhar. Com surpresa, ele viu a inédita lágrima, cintilando
na face que ela ocultava. A lágrima é água e só a água lava tristeza.
Justino sentiu o tropeço no peito, cinza virando brasa em seu coração. E fechou
a noite, a porta decepando aquela breve desordem. Glória colheu a lágrima com
dobra do próprio vestido. De quem, dentro dela mesma, ela se despedia?
Saiu do baile, foi de encontro
às trevas. Ainda procurou a velha carrinha. Ansiou que ela ainda ali estivesse,
necessitada de um empurro. Mas de Justino não restava vestígio. Voltou a casa,
sob o crepitar dos grilos. A meio do carreiro se descalçou e seus pés receberam
a carícia da areia quente. Olhou o estrelejo nos céus. As estrelas são os olhos
de quem morreu de amor. Ficam nos contemplando de cima, a mostrar que só o amor
concede eternidades.
Chegou a casa, cansada a ponto
de nem sentir cansaços. Por instantes, pensou encontrar sinais de Justino. Mas
o marido, se passara por ali, levara seu rasto. A Glória não lhe apeteceu a
casa, magoava-lhe o lar como retrato de ente falecido.
Adormeceu nos degraus da escada.
Acordou nas primeiras horas da
manhã, tonteando entre sono e sonho. Porque, dentro dela, em olfatos só da
alma, ela sentiu o perfume. Seria o quê? Eflúvios do velho frasco? Não, só
podia ser um novo presente, dádiva da paixão que regressava.
— Justino?!
Em sobressalto, correu para
dentro de casa. Foi quando pisou os vidros, estilhaçados no sopé de sua janela.
Ainda hoje restam, no soalho da sala, indeléveis pegadas de quando Glória
estreou o sangue de sua felicidade.
Título: O perfume
Fonte: Conto presente no livro “Estórias
Abensonhadas”, de Mia Couto.
Copyright 2014 Alfredo Lima
Designed by Ícaro Molinari & Template Trackers