Um pouco antes das 09h, corri ao sacolão. E lá,
exatamente no caixa, uma garota roubou a cena.
A pedido da mãe, ela pegou o pacote da promoção,
completando as compras. Voltou para a fila, retirou o cartão de uma pequena bolsa,
informou que o pagamento seria no débito.
A mãe, toda orgulhosa da atitude da pequena,
acompanhava todo o processo. Os clientes pararam para assistir à desenvoltura daquela
garotinha nos seus 07 anos.
– Meus parabéns! Você é muito esperta!
– Muita obrigada! Eu que cuido das finanças da minha
mãe.
Todos os clientes riram e elas saíram carregando as
sacolas.
Eu ainda nem tinha feito o pagamento da minha pequena
compra, quando ouvi:
– Moço! Moço! Eu te conheço!
Nesse tempo com máscaras, vira e mexe a gente acaba
não reconhecendo alguns moradores da quebrada. Acontece.
– Você é o moço dos livros! Eu estudei teatro com sua
mulher.
De fato, eu não me recordava. Parece que a pandemia já
dura uma década. A gente se perde ou perdeu. Não é mesmo?
Assim que se reapresentou, ativei todas as suas
atuações no palco e nos bastidores da Cena. Por alguns segundos, um enredo se desenrolou
nas páginas da minha memória.
A menina contou que mudou de casa, está morando em um
apartamento agora. Ao final, passou o novo número do telefone da mãe, que
aguardava no outro lado do passeio.
– Quando começar o teatro você pede a professora para
ligar para minha mãe?
– Claro!
– Promete mesmo, moço?
Aquela antiga aluna mudou o ritmo do meu dia. Aquela
menina, provavelmente não sabe, mas no início daquela manhã trouxe um feixe de
luz para toda família. Ela foi o assunto do dia, tema especial para essa crônica
com tinta de recomeço.
Página 16
Para
encarar o próximo mar, resolvi escrever um pouco sobre o que me atrai ou talvez
mais sobre aquilo que me distrai.
Descobri
recentemente que há elos inesquecíveis do meu outro eu no corpo presente.
E
por que dessa insistência em juntar os elos desconhecidos da minha pessoa?
Essas partes querem se conhecer e a única forma de urdir as lacunas, colar as
pelas é escrevendo.
A
vida tem ateado tanto caos. Pensar tem sido pretexto para não existir.
Página 25
Queria
que a decadência fosse um quadro gigantesco. Um quadro pintado por todos os
sobreviventes deste tempo.
Quem
sabe assim, pintando as fraquezas, dúvidas, dívidas e derrotas, a gente não se
sentiria mais HUMANO?
Página 34
Exposição
da cicatriz, da falta, é o que defendo no momento. Eu cansei da vida cheia de
filtros, contornos, impulsionada pelo gesto mecânico, vazio, da pressa dos
ângulos editáveis do mercado.
Por
que no meio de tantas mentiras ser sensato virou motivo para descrédito,
repulsa e cancelamento?
Qualquer
linha mais substantiva da arte provoca reações catastróficas: “Isso vai causar mimi!”
Nossa! Esse tema está pesado demais! Aí você foi brabo”, entre outras
expressões passageiras da superfície.
Em
que mundo sobrevive esse povo? Quer dizer que a arte só pode ser leve? Eis o
templo das gourmetização, do romantismo que só agrada a maioria. E nesse rolo
de desinformações, de valores esquizofrênicos o que gera status, escala
negócios é o pacote das ilusões: vida
fácil, dinheiro fácil, fama a qualquer custo.
Só
o resultado importa?
Página 52
Posso
estar enganado, mas sinto que este tempo implora por um pouco mais de
expressões sinceras, por manifestos pela união de todas as classes, credos;
carece de protestos pelo direito à vida digna... de todos!
Ou posso apenas estar muito enganado mais uma vez. Você também está se sentindo assim... na contramão dos extremos?
Série
de textos: Caderno Azul
... farelos por aí ...
Como se explicar a relação com a escrita nesses tempos?
Tudo que vai lê nas próximas linhas não passa de uma série de insucessos sobre aquilo que tinge a página, tela.
Às vezes as palavras apenas surgem como tinta, em cores que ainda não foram nomeadas, dispostas na paleta de um pintor expressionista.
Escrevo para me despertar de sonhos intranquilos da noite imprecisa que se estende por muitas semanas.
Escrevo para voltar à superfície, frágil, mesmo deixando as raízes dos meus dilemas à mostra.
Cansei de fugir. Existir dói menos que pensar. Escrevo para encontrar uma gota de força na rua do reencontro. Escrevo porque preciso me reencontrar.
Caderno Azul (p.7)
04 de julho de 2021
... farelos por aí ...
Queria ter
vivido melhor,
porém a mediocridade sempre me foi farta
e generosa nos caminhos que escolhi para viver.
Queria ter sido mais alegre,
porém a tristeza sempre foi companheira fiel
nos dias intermináveis de abandono.
Queria ter amado mais as pessoas que conheci
ou que fingi conhecer,
porém, na maioria das vezes,
eu também não me conhecia.
Queria ter andado mais livre,
porém, algemado à ignorância, perdi muito
tempo tentando voar sem sequer saber andar.
Queria ter lido mais livros,
porém, analfabeto de ousadia, passei
muitos anos enxergando pelos olhos
adormecidos de outras pessoas.
Também queria ter escritos mais poemas
do que bilhetes pedindo desculpas,
porém as palavras sempre me vieram
como culpa e quase nunca como estrelas.
Queria ter roubado mais beijos e abraços
protegidas pela
magia da infância,
porém cresci muito cedo e a timidez sempre
me foi uma lei muito severa a ser cumprida.
Queria ter pensado menos no futuro,
porém o passado simples
nunca foi o melhor presente
e a eternidade sempre me pareceu coisa de gente
que tem preguiça de viver.
Queria ter sido um homem mais humilde,
porém a vaidade e a ganância sempre
me cercaram de mimos e coisas que até hoje
Queria ter
pregado mais a paz,
porém, como um covarde, gastei muita munição
tentando atingir amigos e desconhecidos
que não usavam coletes à prova de balas
nem blindados no coração.
Queria ter sido mais forte,
porém rir dos vencidos e bajular os mais ricos
sempre me pareceu o caminho mais curto
para o esconderijo secreto das minhas fraquezas.
Queria ter dito mais a verdade,
porém a mentira sempre foi moeda de troca
para comprar o respeito e a admiração
das pessoas fúteis de almas vazias.
Queria que o mundo fosse mais justo,
porém, avarento de nascença, fui o primeiro
a esconder o sol na palma da mão,
antes que o vizinho o fizesse,
e mesquinho por vocação
escondi as noites com lua
para que os poetas não a cortejassem.
Queria ter dito mais besteiras,
porém fui desses idiotas amantes
das proparoxítonas e sujeito oculto
nos bate-papos de botecos de esquinas,
onde a vida não acontece por decreto.
Queria ter colhido mais flores,
porém o medo de espinhos
afugentou a primavera e,
outono que sempre fui,
plantei inverno quando a terra pedia verão.
Hoje, queria ter acordado mais cedo,
porém temo que, pra mim,
seja tarde demais.
Título: Porém
Fonte: O poema está no livro “Colecionador de pedras”, de
Sérgio Vaz.