Ao receber O livro do acaso, um silêncio contemplativo tomou conta do meu
mundo, tingindo-o de rosa intacto das páginas de madeirite.
Depois desse primeiro contato, nasceu
uma enorme vontade de ler/reler e comentar cada cena, cada imagem com as
pessoas do meu convívio. A essa altura já tinha acontecido: eu estava
deslumbrado com o projeto. E agora compartilho, neste pequeno ensaio, algumas
poucas impressões sobre o livro que recebi de presente.
A começar pela leitura da capa do
livro, dois aspectos atiçam a nossa curiosidade: a presença do madeirite e a
árvore — os emaranhados de galhos com o nome de escritores de diferentes
épocas. Abrindo a obra e, analisando capa e quarta capa, percebe-se o movimento
do misterioso personagem que nos encanta do início ao fim da leitura.
I. O MAESTRO
O livro do acaso é, antes de tudo, um exercício de
sensibilidade e descoberta. A primeira, por parte do maestro Nelson Cruz; pois
é indiscutível a harmonia musical que a obra demonstra em sua criação, a
combinação das frases com a trajetória do personagem é rítmica, sonora, exala
música em nossos olhos.
Descoberta para o leitor que, a cada
página, percorrerá contextos culturais distintos da literatura (Padre Antônio
Vieira e João do Rio, por exemplo), palmilhando o mundo rosa do madeirite:
material que permitiu ao artista o arranjo artístico-literário da obra.
Para compor O livro do acaso, Nelson Cruz cruzou frases de 11
escritores da literatura de língua portuguesa, trazendo aos seus leitores nomes
pouco conhecidos/estudados, como Auta de Souza, Beatriz Francisca de Assis
Brandão e Arthur Azevedo. Ao resgatar tais escritores, o nosso maestro revela a
ária da pesquisa, o canto que traz um encanto do leitor que sempre foi e do
artista especial que é.
II. PICTÓRICO E DELIRANTE
Nelson Cruz confessa que “nesses anos
de trabalho com artes plásticas e ilustração adotou o hábito de colecionar
objetos de naturezas diversas, porém que contivessem plasticidade em seu
aspecto.” E foi assim que ele viu no madeirite a possibilidade de compor o seu livro do acaso, ali bem no improviso distinto do rosa.
A tessitura desse trabalho dialoga com
uma das imagens presentes no empório de Manoel de Barros, que trato aqui como
empório das inutilidades, pois o nosso maestro se tornou poderoso por descobrir
na insignificância da madeira o deleite para os seus leitores: imagens verbais
e não verbais que “relaxam a mente, divertem”. Eis uma história que nos conduz
para a cidade distante onde as “ruas têm alma” e o seu principal habitante as
percorre poeticamente.
Cena do filme Cantando na chuva |
Nesse percurso destaco outros dois
diálogos: um com o cinema, outro com a pintura. O protagonista (na p.21) relaciona-se
com a famosa cena do longa Cantando
na chuva . E na p.25, num momento decisivo
da narrativa de Nelson Cruz (que não posso contar aqui, pois você descobrirá ao
entrar em contato com o livro) o personagem diante do lago, no espelho d`água
lembra uma das célebres pinturas de Caravaggio, Narciso.
Narciso, pintura de Caravaggio |
Ao empreender esse importante projeto
artístico, o nosso maestro atuou também no empório de Fernando Pessoa, em
especial, nos rios do heterônimo Alberto Caeiro. Por colher frases diversas,
organizá-las e ilustrá-las, esse trabalho configura-se como uma espécie de ação
daquele “guardador de rebanhos”, um colecionador de cores na superfície
infinita dos pensamentos. Assim, será sempre oportuno dizer
que O livro do acaso é um caso de poesia.