O terminal rodoviário estava um caos dos diabos, aquele calor
dos últimos tempos dilatando a impaciência dos passageiros, falta de
informação, mal humor dos "pseudo-ricos", atraso das partidas e lá quase no pé da
escada, bem pertinho da porta do ônibus, ELA.
Clarice pediu água mineral, Cecília queria comprar chicletes, a
esposa vigiando as bolsas, eu ali sem acreditar que era ELA.
Será que ELA vai me cumprimentar?
porque tem ex que não está nem aí pra gente, tem ex que faz questão de esconder
o rosto, fingir que a gente nem fez parte da vida dela. Na real? já tive ex que
me maltratou com comentários tão indelicados, mas tão indelicados que cheguei a
ouvir: “Ah, veja o que esse infeliz foi fazer da vida!”;
E ELA?
Ah, não resisti. Não fiquei pensando demais, nem quis saber com
quem estava, fui até a ex, todo espalhafatoso. Ela ficou toda surpresa, soltou
o sorriso bonito dos velhos tempos, lasquei um abraço. Que abraço gostoso!
— Nossa! Como suas filhas cresceram? Outro dia mesmo a Clarice
estava nascendo.
— Eu não acredito que vamos viajar juntos!
— Vou viajar com meus pais. Tenho uma praia só minha, desde
pequenina.
— Ah, não! Vocês vão do meu lado?
Ela com a mãe, à esquerda. Eu com a Cecília. Minha esposa com a
Clarice na poltrona da frente. Bem, o pai da ex atrás na poltrona atrás da
minha.
Você não faz ideia do quanto a família da ex nos ajudou. Eu não
conhecia o trajeto. Sem a presença deles, certamente cometeria muitos erros,
como por exemplo, descendo no terminal errado.
Naquelas horas de viagem, entendi porque a ex é uma pessoa tão
engajada, crítica, reflexiva. Conversamos muito sobre diversos assuntos. Às
vésperas de descer nosso destino, fiz uma revelação para mãe e filha (ex):
— Toda vez que vou
trabalhar com Clarice Lispector, lembro-me da sua filha. Ela despertou um
grande interesse pela autora.
— Verdade! Tanto que vira e mexe está no sebo atrás dos livros
da escritora.
— Clarice Lispector é uma das minhas favoritas, professor.
Aquele depoimento me levou às nuvens. Por um instante, esqueci
completamente das mais de 12 horas de viagem. Aquele relato foi mais do que
bálsamo para os ruídos daquela amanhã, foi a prova de que vale a pena ser um
farelo por aí. A descoberta de que despertei o gosto pela literatura (em
especial, a brasileira) em uma jovem, como a ex, me deixa assim... emocionado.
...
farelos por aí ...
Crédito da imagem: http://nilcatalano.blogspot.com/2010/09/explosao-em-cores.html