Eu gostaria de começar assim esta crônica, mas é que para apreciar os segredos da arte a gente precisa, primeiro, construir caminhos, “aprender os princípios”.
E só constrói caminhos quem está disposto a “repetir repetir – até ficar
diferente”. Depois de muito ensaio, treino e rascunhos, eis a compreensão de
que “repetir é um dom de estilo”.
Em uma dessas tardes de outono aí, ministrei uma oficina de leitura para os estudantes da 1ª série. Cada grupo com 4 ou 5 integrantes recebeu um poema da obra O livro das ignorãças, de Manoel de Barros. De forma livre, sem a necessidade de escrever um breve texto, eles tinham que ler, discutir, conversar a respeito da poesia em questão.
Para tanto, eles deveriam recorrer aos recursos expressivos da linguagem literária e, ao final, tinham que apresentar uma interpretação possível de tal poema para a gravação de um vídeo de, no máximo, 1 minuto.
De vez em quando, eu visitava os grupos que receberam a atividade
como uma espécie de desafio. Em cada sala, uma recepção inusitada e criativa
dos poemas. Até que um grupo da 1ª C partiu para a desinvenção das
regras:
- Farelo, podemos desenhar? É que só sei ler poesia a partir das
imagens.
Com aquela perspectiva, o grupo ganhou minha admiração. O resultado
dessa liberdade das oficinas foi que, no momento do vídeo, esse grupo foi além,
mergulhou nos “deslimites da palavra” e teve que gravar em dois takes.
Só que a magia não parou por aí. Um dos integrantes desse grupo se
sentiu motivado a ler e interpretar os outros poemas do livro. Tanto que na
semana seguinte me narrou com orgulho e satisfação a experiência de sua
“didática da invenção”:
...
Farelo, para ler Manoel de Barros é preciso se sentir como Manoel de
Barros! Para ambientar a terra, as origens do autor, resolvi fazer uma coisa
diferente. Fui à sorveteria “Frutos de Goiás” e lá pedi um picolé de araticum e
depois outro de buriti. Com esses sabores, eu estava pronto para ler e
interpretar os textos dos três capítulos.
Na verdade, professor, eu tive que me desligar desse mundo, entende? Não
vou mentir. Alguns textos eu tive que ler várias vezes, mas com o tempo tudo
passou a fazer sentido. Acho que consegui encontrar uma lógica fora da lógica,
os textos foram se conectando. O jeito que ele constrói as frases. E não é que
eu gostei?
...
Naquele momento, tudo parou. Eu não precisava me preocupar com as outras
demandas da lista de tarefas. Tive uma enorme vontade de ficar ali, estático,
somente ouvindo todas as descobertas daquele mais novo leitor de Manoel de
Barros. Detalhe à parte, esse estudante possui o sobrenome do autor.
Agora, de volta ao início da crônica, posso lhe explicar que para ler poesia é preciso construir caminhos, é necessário dedicar tempo, pois o texto carece da entrega de nossa subjetividade.
Além do efeito dos picolés de sabores
exóticos, o leitor passou quase um final de semana envolvido com os textos. Com
isso, entrou em contato os artifícios da criação literária, conheceu o processo
do artista e pode, melhor do que ninguém, assistir ao voo do verbo em estado de
delírio.
Alfredo, parabéns pelo texto e pelo trabalho incessante de trazer a literatura para o alcance das mãos. Vou usar suas palavras: "é preciso construir caminhos, é necessário dedicar tempo," pois a vida precisa de poesia e literatura. A poesia de Manoel de Barros foi transformada em conteúdo, retransformada em vivência e experiência, e convertida por você em crônica poética. É ótimo encontrar arte e educação num mesmo texto.
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