Dar-se um nome, que seja na forma de um apelido, é o que o menino de camisa de listras se deu, na narrativa que se inicia e se conclui com a palavra “Silêncio”, no que é “Um Estranho para o Céu”, de 2016, o seu prenúncio de uma vida andante, a vida do Dito, nosso personagem magnífico, dócil e encantador.

 

A boa-vontade do garoto desponta em suas primeiras ações, atos das mãos, dos pensamentos que elabora, das palavras que pronuncia, dos gestos que empreende. Dito mora com quem o recebeu, desmedidamente, acolhendo-o com afeto e carinho, aos quais ele retribui em similar medida. Piedade e Miguel proporcionam a Dito um lar, e ele irá fazer resplandecer sobre o povoado o fogo que trouxe do céu, o reavivamento da esperança e da solidariedade.

 

Neste texto, insere-se o personagem Bartô, que “deita a vida em livros”, um eu-outro do escritor Alfredo Lima, reflexo e espelho, homenagem e reconhecimento das influências estimuladoras de um fazer poético.

 

“Nublado”, de 2024, se inicia com uma palavra nebulosa “Nuvem”, título que nos reporta ao estado de cobrir-se de nuvens, mas a narrativa é finalizada com a palavra “Céu”, termos que levam à reflexão de que os substantivos configuram estados de alma, camadas viscerais que se transmutam e se transformam, embora ambos sejam espaços integrantes do éter, solúveis, gasosos, finos ao tato, delicados, pois são estágios e sensações do sentimento.

 

Dito cresceu, é um adolescente. Sensível, bem-conversado, tenaz, perspicaz, atuante, ousado, integrador, a desenvolver, cada vez mais, as capacidades em semente, presentes nos episódios de sua infância.

 

A tônica da solidão, do coração que dói perante o abandono, das casas que se esvaziam, dos entes que se distanciam são os elementos que as nuvens carregam no peito do sr. Rafael, nome de arcanjo, sentindo as faltas, mas resgatado pelo próprio nome que significa a cura de Deus. E essa cura vem via Dito, (uma espécie de Santo Expedito, invocado diante dos problemas urgentes, protetor da família?).

 

Estamos lidando com uma escrita que mescla terra e valores espirituais muito elevados, derivados da virtude, da filosofia, dos diálogos, dos olhares, das percepções. E tudo oferece um grande perigo aos que delegam ao destino as agruras e as soluções em si-mesmas.

 

Porque há em “Nublado” intercessões pelo veio da bondade. O mal não é qualificado ou recebe lugar na mesa da narrativa, sobre ele estando a toalha deveras esticada. Não se dá lugar ao mal, ele é simplesmente expulso, afastado, e o bem assume o protagonismo de toda e qualquer situação.

 

Para as perturbações do mundo em que vivemos, texto de Alfredo Lima é uma afronta ao poder mais mesquinho, bélico, vampiresco, grotesco, imperialista, fascista, porque ele põe abaixo dos pés toda tentativa de golpe. A bondade viceja abundante, sorridente, pacificadora, restauradora, “gostosa e demorada como um abraço”, sem que haja fresta para a infiltração do ódio e da malevolência.

 

É de misericórdia e de paz que a narrativa ergue a potência do texto, por isso atingimos o “Céu”, quando o enredo nos conduz a ele, lapidando-nos pela ternura, pelo desnudar dos nossos padrões mesquinhos, pelo desvestir das nossas imoralidades, pelo romper das nossas tradições atravancadas, ultrapassadas, nutridas pela falta de um refletir mais coerente.

 

E vendo-nos nuvens no vazio, ansiamos o alimento às nossas carências e faltas, o que de graça nos é ofertado, pela faculdade de compreendermos ser o amor que vivifica e agrega o homem, que o faz homem, que o preserva na condição humana, pela colaboração, pelo desprendimento, pela vocação de constituirmos a humanidade, independentemente de qualquer argumento que possa diminuir qualquer ser entre nós.

 

Se era objetivo do autor nos ciceronear pelo caminho da luz, o vale das trevas não seduziu ou nos fez desmoronar nos desfiladeiros agonizantes; atingimos o Céu, com passos mesmo, numa solidária direção, nem nos foram necessárias asas.

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Anderson de Oliveira é escritor. Participou de inúmeras coletâneas, publicou Pá & Pedra, finalista do Concurso Nacional João de Barro, em 2000; Dona Feia narrativa selecionada para o PNBE 2011; A lenda dos dinossauros foi escolhida para o Catálogo de Bolonha, no ano de 2014; A, B… Z Bicho é um “bichonário” de musicalidade; A neta de Anita, cuja temática é o processo de reconhecimento racial e identitário, destacou-se entre os 13 livros mais marcantes da literatura infantil pela Casa Vogue/2019.  Um dos seus mais recentes títulos é Mona Lua e o Monstro Cinzento, publicado pela editora Alumbre.



 

– Quer dizer que agora você está correndo?

– Não é bem assim. Estou bem no começo.

– De vez em quando te vejo treinando lá perto de casa. Parabéns!

Dessa conversa com o motoboy de um restaurante local, aprendi a lidar com duas situações que ajudaram nos meus primeiros passos.

Renato treinava, naquela época, uma média de 4 vezes por semana. Com isso, demonstrava certa experiência. Em outras conversas, confirmou a participação em algumas provas, mostrando o quadro de medalhas no celular.

À medida que fazia entregas em nossa casa, ele fazia questão de tocar no assunto: “E aí, tá firme nos treinos?” Usava palavras do mundo da corrida que só fui aprender e experimentar mais tarde.

Voltando à situação inicial, que está diretamente ligada a esses termos, um dia ele perguntou qual era o meu “pace”, já que eu pretendia correr uma prova de 5 km ainda naquele ano.

– O que é isso? Como a gente encontra esse trem? – foi minha mais sincera resposta.

O rapaz não conseguiu segurar o riso. Com a maior paciência, explicou que se tratava do ritmo médio de um corredor em uma determinada distância e que isso era medido em minutos por quilômetro.

A essa altura, ele me mostrou o aplicativo de corrida que usava. Pediu licença para instalá-lo no meu celular e, com boa vontade, explicou como eu deveria utilizar a ferramenta.

Antes de finalizar a entrega, surgiu a outra situação embaraçosa:

– Bem rápido, tem como mostrar o tênis com que você está correndo?

Assim que mostrei o par de sapatênis, já bem detonado, ele sorriu novamente e passou outras dicas breves:

– Moço, com isso não dá pra treinar. Você vai acabar se machucando. Faça o seguinte: primeiro, vai a uma loja e pede para experimentar tênis para corrida, entendeu? Sabendo o modelo e a numeração, depois você compra pela internet e aproveita umas promoções, entendeu?

Sim, entendi uma parte daquelas orientações: eu precisava de um outro pisante.

Lição: Utilizar um aplicativo gratuito de corrida e providenciar um tênis confortável, específico para corrida, vão ajudar bastante nessa modalidade esportiva.


 


                                                              

Por um mínimo de resistência física, era hora de voltar à academia, mesmo que de maneira esporádica durante a semana. Não sei avaliar se foi a alternativa mais adequada para o contexto, mas entendia que precisava perder peso para começar a correr.


Minha ficha sempre incluía atividades na esteira: caminhada ou corrida leve. Recordo-me de que aqueles 10, 20 e 30 minutos eram difíceis, tanto pela exigência de um corpo sedentário quanto pela monotonia. A vontade de desistir era grande, mas o Desafio nem havia começado.


Após algumas semanas, em uma tarde de domingo melancólica, criei coragem, nem sei de onde, calcei um sapatênis e fui caminhar na Cidade de Minas, a principal rua da nossa quebrada. Guarde esse nome, porque, vez ou outra, vou mencioná-lo por aqui.


Não sei como, mas consegui dar duas voltas naquele dia, sem parar nenhum momento. A caminhada durou uns 50 minutos e senti pela primeira vez o tal cansaço de uma atividade física.


Quando contei para o treinador da academia, ele vibrou com a iniciativa e disse que eu deveria fazer isso mais vezes durante a semana, e que, em breve, já conseguiria até correr. Levei um tempo para acreditar naquele incentivo. "Ah, deve ser mais um papo de professor de Educação Física".


Eu estava enganado. No mês seguinte, já conseguia repetir a ficha da esteira na rua. Corria 3 minutos e caminhava 1, e fui ampliando as variações. Claro que o tempo de corrida parecia uma eternidade, mas fui “destravando” e começando a perceber alguns sinais de progresso.


Quanto tempo gastei para alcançar a primeira conquista? Não faço a menor ideia, mas correr o primeiro quilômetro na Cidade de Minas foi um dos dias mais felizes da vida daquele sedentário.


Lição: O dia em que você conseguir correr seu primeiro quilômetro, comemore. Foi o que fiz e, de lá para cá, aprendi a comemorar todas as conquistas. Correr aqueles 1000 metros representou um sinal de esperança.


 


A data exata eu não sei informar, mas acredito que tenha sido no final do primeiro semestre de 2018. Em uma das rotas de casa para o trabalho, tenho o privilégio de passar pela região da Pampulha. Adianto que foi lá onde tudo começou.

Aconteceu em uma daquelas manhãs, depois de ver tantas pessoas caminhando ou correndo. Recordo-me de ter soltado a seguinte frase:

– Um dia, vou participar da Volta Internacional da Pampulha.

Na hora, a garotinha se ajeitou na cadeira, parecia um pouco desconfiada, mas logo retrucou:

– Correndo, pai? Coitado!

Ela nem esperou uma explicação. Não tive tempo nem de abrir a boca direito.

– Eu duvido. Você não dá conta de brincar com a gente direito.

A verdade. Ela só falava a verdade, mas aproveitou para rir à vontade. Pensou que eu estava de brincadeira, que seria mais uma daquelas falsas promessas. Mas, como fiquei sério, ela mudou o tom da conversa:

– Já que é assim, te desafio a correr a volta, então!

– Desafio aceito!

Claro que, naquele momento, eu não tinha a mínima ideia da aventura que tinha pela frente. Como aceitar o desafio de correr 17,8 km sem nunca ter trotado 1 km inteiro? Guardei aquilo só para a família, porque, se dissesse para outras pessoas, com certeza iriam me chamar de louco.

Maluco ou sem noção, não tinha como desistir. Eu havia prometido à minha filha. E tinha certeza de que, se não cumprisse, ela sempre iria tocar na derrota.

Com aquele quadro de sedentarismo e a balança em pé de guerra com minhas medidas, você já deve imaginar para onde tive que voltar para dar os primeiros passos rumo ao desafio.


 

 

Um jeito na vida assim de uma hora para outra?

Quando o assunto é atividade física, no meu caso, nada aconteceu tão rapidamente. Enfrentei alguns tropeços, especialmente na época em que o médico recomendou a musculação.

Baixa imunidade, resistência frágil, alimentação irregular e o retrato do sedentarismo foram sinais que me indicaram a necessidade de procurar uma academia perto de casa. Nem preciso dizer o quanto admirava o ambiente da academia.

Era fevereiro. Uma academia recém-inaugurada, com todas aquelas promessas encantadoras. A conversinha mansa dos proprietários e lá fui eu, comprar um pacote anual, mais em conta. O desconto era interessante. Os benefícios, infinitos.

Surfei um pouco na onda do verão, vésperas de carnaval, e a academia estava lotada. Com certo esforço, ia três vezes por semana. O resultado começou a aparecer, mas, lá por abril, peguei dengue. Com os sintomas, claro, sem chance de fazer qualquer atividade física. Uma semana de molho.

Outra semana sem frequentar a academia. Depois, ia, no máximo, duas vezes por semana. Minha carga horária de trabalho aumentou e ficou fácil inventar desculpas para abandonar a musculação. Não é o final da história ainda, mas a moral você já conhece: tornei-me um patrocinador daquela empresa.

Do efeito sanfona ao retorno ao perfil de sedentário foi um pulo. Desde então, nunca mais paguei por um pacote promocional. O pessoal até fica irritado comigo, mas peguei ranço desses “descontos”.

Antes de voltar a caminhar, reforço que continuo não gostando da academia. Só vou por necessidade e para continuar firme no propósito, evitando complicações que vou tratar ao longo da nossa jornada.


 

Vídeo de estreia, recomeço, mencionado lá no post  "Na ponta da caneta"



 


Por longas semanas fiquei sem irrigar a terra da criação de histórias. Juntei três espécies de adubo que encontrei na beira da estrada da Obrigação e foi ficando nisso até que um dia:

– Esterco no saco de linhagem apodrece, menino. Tem que botar em volta do pé, a planta agradece – raiou Tina.

De tempos em tempos, ela olhava para as ervas daninhas saindo no tapa, disputando a derrota das verduras, mas quase nada dizia.

– Quando cê criar coragem de enfrentar esse mato vai dar valor à terra desse pomar.

Morava uma verdade naquela insistência. Pena que demorei para reconhecer o tom com que Tina falava.

– Não adianta contratar nenhum jardineiro ou lavrador. Cê que tem de deitar a enxada aí.

Além de ser dona da verdade, Tina dificilmente perde os frutos de uma semente lançada no solo de nossas ideias. A mulher tem sabedoria de rainha. Foi assim que frutificou decisões importantes na vida do Branco, quando o moleque desistiu lá de tirar a carta de moto. E do outro filho, com uma única pergunta, o abandono definitivo da bebida.

A relação com a terra exigia novas experiências sensoriais. O canto do sabiá-laranjeira aguardava os ruídos da destruição, o bico voraz do jacu que ia levando de eito o último canteiro da hortaliça guerreira.

O alecrim silvestre, preguiçoso no galho, desanimava-se para a transformação em vassoura e espalhar seu perfume no terreiro. Assim, as plantas, os bichos todos acenavam para o fim, de menos a terra.

Tina sabia mais do que ninguém: “isso não pode continuar assim.” Sentamo-nos à mesa para um suco e ela prometeu que me ajudaria a recuperar boa parte da plantação. Ainda estava em tempo.

– Cê precisa dos frutos dessa terra, carece de enredar as histórias. Cê num aprendeu outras formas de lidar com as agruras da vida, menino.

Aos poucos, de muitos cantos de louvor à terra, seguindo as instruções daquela senhora, alfabetizei-me nas fases da lua, ouvi as linhas e os segredos do plantio, a aguar as sementes em cada ciclo. E só muito tempo depois é que penso ter chegado à festa da primeira colheita.

– Das lições sobre a terra das histórias que aprendi com a senhora, passo a ver minha jornada como uma flor de acerola. Aparentemente mínima, invisível, porém responsável por três temporadas de frutos no ano. 

– Cê já pode se preparar para a próxima estação. Tá pronto pra voltar, menino. Tá pronto!

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